A reparação dos danos morais nas relações de consumo
Os danos morais/extrapatrimoniais devem ser reparados tendo como alvo o efetivo alcance da tríplice função do instituto, a saber: compensação do lesado, punição do agente lesante e dissuasão deste e da sociedade como um todo, para prevenir a repetição do evento danoso.
A partir dessa perspectiva, dependendo do caso concreto, uma função em especial pode assumir maior relevância no momento da fixação do valor indenizatório.
No direito do consumidor, são duas as funções que assumem maior relevância: a função punitiva e a dissuasora. Essa característica decorre da massificação dos contratos nas relações de consumo; havendo milhares de clientes, é possível que o dano seja praticado em larga escala, razão pela qual o instituto do dano moral assume o papel de instrumento de punição contra o lesante e também de inibidor de novos danos.
Segundo entendimento de Cláudia Lima Marques:
Na sociedade de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em grande quantidade, o comércio jurídico se despersonalizou e se desmaterializou. Os métodos de contratação em massa, ou estandartizados, predominam em quase todas as relações contratuais entre empresas e consumidores. Dentre as técnicas de conclusão e disciplina dos chamados contratos de massa, destacamos, desde a quarta edição, os contratos de adesão, as condições gerais dos contratos ou cláusulas gerais contratuais e os contratos do comércio eletrônico com consumidores. [1]
Essas modalidades de contratação geram evidentes benefícios para as empresas, que redigem unilateralmente as cláusulas mais vantajosas para o prosseguimento de sua atividade. Do outro lado da relação contratual encontra-se o consumidor, que apenas manifesta se deseja ou não o produto ou o serviço prestado, naquelas condições apresentadas pela empresa. Repetidas vezes a própria vontade do consumidor é viciada em virtude da publicidade ostensiva e do próprio contexto social existente, marcado pelo avanço tecnológico, consumismo desenfreado e contínua substituição de bens.
É importante, todavia, fazer uma ressalva: nem toda demanda de direito do consumidor é movida contra empresas de grande porte e contratação em massa, existem também aquelas pequenas empresas que possuem poucos clientes, com área de atuação local (bairro, comunidade, município, etc). É imprescindível diferenciar um caso do outro, para que não seja fixada uma indenização desproporcional em desfavor de uma pequena empresa, fato que poderia até mesmo inviabilizar o prosseguimento da atividade comercial.
Nas palavras de Carlos Alberto Bittar:
Com efeito, em plena era do consumismo – ativada e reativada por publicidade maciça e atraente – cercam-se as pessoas, diária e seqüencialmente, de necessidades, muitas criadas pela própria evolução tecnológica, que precisam satisfazer, participando, assim, direta e indiretamente, de operações de consumo.[2]
Na reparação dos danos morais no direito do consumidor, deve-se ter em mente essa realidade jurídica e sócio-econômica, para só então avaliar a maneira mais adequada de cumprir com a referida tríplice função. Um dano extrapatrimonial praticado por uma grande empresa contra um consumidor, tem o potencial de repetir-se com outros milhares, numa espécie de reação em cadeia. Nessas hipóteses deve-se aplicar com maior rigor a função punitiva e dissuasora, de forma a reparar o consumidor individualmente lesado e proteger a própria sociedade de eventuais repetições do evento danoso.
A prova da repetição do dano para com outros consumidores é um critério fundamental no desenvolvimento da ação, que deve ser analisado em conjunto com a função punitiva e dissuasora no momento da fixação do valor indenizatório. Esse critério serve para demonstrar que o modo de produção em série, adotado pela empresa lesante, trouxe consigo conseqüências indesejadas que se repetiram em desfavor de outros clientes.
Para Rizzatto Nunes:
[...] uma das características das sociedade de massa é a produção em série (massificada). Em produções seriadas é impossível assegurar como resultado final que o produto ou o serviço não terá vício/defeito.
Para que a produção em série conseguisse um resultado isento de vício/defeito, seria preciso que o fornecedor elevasse seu custo a níveis altíssimos, o que inviabilizaria o preço final do produto e do serviço e desqualificaria a principal característica da produção em série, que é a ampla oferta para um número enorme de consumidores.
Dessa maneira, sem outra alternativa, o produtor tem de correr o risco de fabricar produtos e serviços a um custo que não prejudique o benefício. [3]
As seguintes ponderações podem servir de auxílio na fixação do quantum devido:
- Qual foi o lucro da empresa com o ilícito?
- Quantos consumidores foram potencialmente lesados?
- Foram tomadas atitudes preventivas pela empresa lesante?
- O dano foi reparado espontaneamente?
- O procedimento que deu origem à lesão foi alterado para evitar outros danos com mais consumidores?
Com base nas respostas desses questionamentos, o magistrado poderá avaliar qual o valor necessário para punir e dissuadir a empresa lesante. Se a indenização for fixada em valor muito baixo diante do benefício obtido pela empresa com a venda do produto ou prestação do serviço defeituoso, certamente haverá repetição do evento danoso.
Isso ocorre porque no capitalismo, a empresa sempre fará um cálculo matemático acerca da margem de lucro obtida em sua contínua busca pelo capital. Havendo lucro, mesmo que seja a partir do procedimento ilícito/imoral, a empresa permanece em sua estratégia, pois eventuais condenações judiciais são inseridas no custo global do serviço/produto, como “parte do risco” da atividade empresarial.
Para Wesley de Oliveira, a utilização da função punitiva não deve ser adotada como regra padrão. Uma das hipóteses em que o referido autor entende cabível a utilização da função punitiva é, justamente, nas relações de consumo, quando o agente lesante incorre em lucro com o dano. Segundo Wesley:
[...] entendemos que em uma única circunstância se justificaria a adoção dos danos punitivos, qual seja, naqueles casos em que o dano constituir-se em causa de lucro para o ofensor [...] Outro exemplo se vê em relações de consumo de massa, nas quais um ínfimo percentual dos lesados ajuíza ação de ressarcimento, sendo que, em alguns casos, “o crime compensa”. A nosso ver, somente nesse caso, quando verificado que, mesmo pagando a indenização por danos materiais e morais, o ofensor ainda lucra, poderia ser concedida verba específica a título depunitive damages. (grifo nosso) [4]
Com efeito, várias empresas fazem um cálculo orçamentário, no qual verificam se a ocorrência dos danos e as condenações judiciais tem prejudicado o desempenho e a lucratividade.
Em relação ao lucro obtido em razão do dano, cabe destacar o posicionamento de Cavalieri:
A indenização punitiva do dano moral deve ser também adotada quando o comportamento do ofensor se revelar particularmente reprovável – dolo ou culpa grave – e, ainda, nos casos em que, independentemente de culpa, o agente obtiver lucro com o ato ilícito ou incorrer em reiteração da conduta ilícita. (grifo nosso) [5]
Segundo o autor acima citado, se o valor indenizatório cumpre com a tríplice função, a empresa é forçada a implementar um controle adequado na qualidade na produção ou na qualidade da prestação do serviço. Dessa forma toda a sociedade é beneficiada, pois melhores produtos e serviços serão oferecidos e os riscos de danos minimizados. É de vital importância destacar que em muitos casos existe um interesse social na fixação de danos extrapatrimoniais decorrentes de relações de consumo, além do interesse individual daquele que propõe a ação, em virtude desse efeito indireto de dissuasão.
O TJSC, ao deparar-se com o contínuo crescimento de ações de danos extrapatrimoniais contra empresas de telefonia e instituições financeiras, prolatou importante decisão que hoje serve como modelo para questionar os valores indenizatórios ínfimos fixados contra esses gigantes da economia. Trata-se do Recurso de Apelação Cível n. 2010.058844-0, de Itajaí, cujo Relator foi o Des. Lédio Rosa de Andrade. Para melhor ilustrar o ponto de vista do eminente Des. Transcreve-se abaixo trecho do Acórdão:
[...]
Uma análise histórica sobre as lides cujo objeto inclui pedido de danos morais pode demonstrar que o alegado efeito pedagógico, até o momento, tão só possui caráter retórico.
Em realidade, não está ocorrendo uma diminuição de ações. Ou seja, em outras palavras, as pessoas jurídicas contumazes em desrespeitar a honra e a moral alheia não estão aprendendo com as condenações que são constantemente apenadas.
E não aprendem por um motivo muito óbvio: é lucrativo manter a atitude ilícita, mesmo diante das condenações. Muitas dessas empresas, em especial do setor financeiro, para agirem com extremo profissionalismo e evitarem a prática de atos ilícitos contra os consumidores, teriam que contratar funcionários especializados e treinados na fiscalização dos próprios atos da empresa. Um banco, por ilustração, não levaria para protesto títulos ilegais, ou não receberia para negócios títulos sem causa, se tivesse um corpo de funcionários aptos à análise de todos estes processos internos. Mas contratar funcionário gera custo. E a política econômica atual é minimizar os custos e maximizar os lucros. Há uma decisão financeira em muitas empresas neste sentido, qual seja, não gastar com funcionário, mesmo sabendo-se que isto levará a prática de muitos atos ilícitos contra consumidores. O que se economiza com a contratação de funcionários e gastos em análise da própria atuação empresarial gera um valor superior ao que se paga como indenização por danos morais.
Diante disso, vale a pena continuar, sob o ponto de vista financeiro, a manter a prática de atuar em massa, sem cautelas, na cobrança de possíveis dívidas, mesmo pagando danos morais. Remeter milhares de títulos ao protesto, por exemplo, sem uma análise pormenorizada de cada um, acaba gerando poucas ações de danos morais. As condenações, em regra, soem ser baixas, pois os magistrados aceitam argumentos do tipo enriquecimento ilícito e indústria do dano moral.
Ao final das contas, agir ilicitamente é lucrativo.
E é exatamente por isso que o efeito pedagógico não funciona. Só funcionará quando, nas planilhas financeiras das empresas, o resultado final gerar prejuízo. Aí sim o efeito pedagógico será forte. A linguagem do dinheiro fala mais alto.
Por esses motivos, faz-se necessário, como política judiciária, aumentar os valores das condenações em danos morais.[6](grifo nosso)
Ainda que de forma tímida, decisões como essa começam a ganhar força, especialmente porque os maiores agentes lesantes em nosso país não tem demonstrado preocupação alguma em prevenir danos, nem mesmo resolvê-los na esfera extrajudicial. Na verdade, o procedimento tem sido inverso: o dano é praticado na modalidade de “dolo eventual”, fundamentado nas seguintes premissas:
- O procedimento lesivo é lucrativo e deve ser mantido;
- Se o consumidor ajuizar ação, o dano pode ser negado na instrução processual, e, mesmo após a sentença, pode-se interpor recursos para postergar a condenação ao pagamento;
- Se o consumidor deixar de ajuizar ação e/ou abdicar do direito, será ainda mais lucrativo, pois será obtido lucro com o dano sem dever de reparação;
- As indenizações fixadas são valores facilmente absorvidos pelo risco da atividade e potencial de lucro dos eventos lesivos;
- Ainda que a indenização seja fixada em valor elevado no primeiro grau e nos Tribunais, podemos pleitear a redução do quantum no Superior Tribunal de Justiça, que costuma acolher os recursos formulados;
- A Justiça em nosso país é lenta e complacente com os lesantes, e frequentemente acolhe o argumento de que o consumidor não pode obter "enriquecimento" com o valor indenizatório.
O processo de mudança e rompimento das premissas acima citadas, depende, fundamentalmente, de um novo rumo nas decisões judiciais condenatórias. Os agentes lesivos contumazes, precisam sofrer severa advertência, caso contrário, prosseguirão nesse processo de transferir todas as suas demandas para o Judiciário, assoberbando ainda mais um sistema incapaz de resolver com a agilidade necessária os conflitos existentes. A mudança de paradigma, fará com que esses gigantes corporativos busquem a resolução extrajudicial dos conflitos, em benefício dos clientes/consumidores e do próprio Poder Judiciário.
Nesse contexto, cabe ao magistrado zelar pelo aspecto técnico-científico nas fundamentação das condenações em danos morais/extrapatrimoniais, apresentando critérios relevantes capazes de sustentar o valor condenatório arbitrado. Recorrer ao prudente arbítrio ou a equidade, revela, em última análise, o desconhecimento das funções e critérios norteadores do dano extrapatrimonial, ou talvez descuido no que diz respeito à técnica jurídica adequada para mensurar o evento danoso e a respectiva necessidade de reparação.
Na próxima publicação, veremos um comparativo entre um dos maiores casos de dano moral dos EUA, e uma situação análoga em nosso país, avaliando-se os valores indenizatórios fixados em cada caso.
Fonte: www.jusbrasil.com.br